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O que o Outono e o Canadá têm a ver com a genética? A Doença da Urina de Xarope de Bordo

Ao ler o título desse texto, você leitor pode ser instigado a pensar que a doença citada só ocorre nesse país e nessa estação do ano. Com isso, você se perguntaria: Por que falar dessa doença em um país tropical como o nosso e no qual, boa parte do seu território apresenta basicamente duas estações: o verão quente e chuvoso e o inverno seco e quente? Mas calma! Não é bem esse o motivo do texto.

Apesar do Canadá já ter contribuído e muito com a genética (basta lembrar que o canadense Colin MacLeod foi um dos cientistas que descobriram que o DNA era o responsável pelo armazenamento da informação genética), o país pode ser lembrado junto com essa doença por ter uma folha da planta Bordo em sua bandeira. No Outono, essas folhas costumam cair e dão um toque vermelho-alaranjado nas paisagens de parques, praças e ruas dos EUA, Canadá e de países Asiáticos como o Japão. Além de ser uma planta típica desses países, do bordo é produzido uma calda, o xarope de Bordo, que é um alimento muito apreciado, especialmente quando colocado sobre panquecas. A planta e sua folha característica, na natureza e na bandeira do Canadá, são mostradas nas figuras a seguir.

A Doença da Urina de Xarope de Bordo (DXB) é uma disfunção genética de caráter autossômico recessivo, caracterizada como um Erro Inato do Metabolismo (EIM), ou seja, um distúrbio em algum gene cujo produto é essencial para o funcionamento normal de alguma via metabólica do organismo. No caso da DXB, o defeito ocorre no complexo enzimático cetoácido-desidrogenase de cadeia ramificada (BCKDH), e pode ser provocado por mutações em três genes: BCKDHA, BCKDHB e DBT (FEIER et al., 2014; HERBER et al., 2015; MOTTA, 2009; STRASINGER, 2000).

Esse defeito prejudica a descarboxilação dos cetoácidos oriundos dos aminoácidos de cadeia ramificada (AACR ou BCAA) leucina, isoleucina e valina (STRASINGER, 2000). Os cetoácidos então, se acumulam nos fluidos biológicos como o sangue e a urina e em tecidos como o tecido do Sistema Nervoso Central (SNC) de indivíduos recém-nascidos. Esse fato é importante, pois o acúmulo dos cetoácidos no SNC pode ocasionar sérios prejuízos para o desenvolvimento das crianças acometidas, como o retardo mental. Além disso, é de fundamental importância o diagnóstico precoce, com o objetivo de impedir que o quadro evolua para óbito no primeiro ano de vida.

Por ser uma doença genética, o diagnóstico precoce é difícil. Para facilitar o seu reconhecimento, o médico combina sinais e sintomas clínicos, como irritabilidade, letargia, alterações respiratórias, urina com odor característico (semelhante ao odor do xarope de bordo, daí o nome da doença), convulsões e coma, com exames laboratoriais, como a reação da urina com 2, 4 - dinitrofenil-hidrazina (DNPH), a quantificação dos AACR por Cromatografia Líquida de Alta Eficiência (CLAE) e mensuração dos cetoácidos no plasma e na urina (FEIER et al., 2014; HERBER et al., 2015; STRASINGER, 2000). Além disso, os médicos podem solicitar a prova da aloisoleucina, considerada como um marcador específico para essa doença.

O tratamento ocorre de acordo com o quadro clínico do paciente e é classificado como terapêutico ou curativo. O tratamento terapêutico inclui uma dieta com restrição dos AACR ou até mesmo, uma fórmula livre de AACR, suplementação com tiamina, alta ingestão de glicose para diminuir o catabolismo de proteínas e consequentemente, o aumento dos níveis desses aminoácidos. Esse tipo de tratamento dura por toda a vida do paciente. Em alguns casos, pode-se realizar a diálise peritoneal ou hemodiálise. O tratamento curativo consiste no transplante de fígado, visto que o órgão pode produzir até 15% do complexo enzimático BCKDH (FEIER et al., 2014; HERBER et al., 2015).

A DXB é uma doença rara e suas taxas de incidência variam de acordo com os lugares, mas é algo em torno de 1:185.000 habitantes no mundo (HERBER et al., 2015). No Brasil, não existe estimativas oficiais, mas neste estudo, os autores fizeram projeções após uma comparação com a quantidade de casos positivos encontrados por eles (n=83) e o período analisado (1992-2011; 20 anos). Utilizando estimativas da população brasileira em 2014 e considerando uma taxa de natalidade de quase 3 milhões ao ano e uma taxa de incidência de 1:100.000 habitantes, eles sugeriram que em 10 anos haveria 300 novos casos de DXB no Brasil, indicando assim, que essa doença é subdiagnosticada.

A DXB não está incluída no famoso teste do Pezinho do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) e isso é um dos fatores que dificultam seu reconhecimento precoce, influenciam no estabelecimento de um tratamento imediato, além de contribuir para a não existência de estimativas oficiais.

Em todas as regiões brasileiras há relatos de casos de DXB (FEIER et al., 2014). Recentemente, uma criança piauiense foi identificada com DXB. Miguel de Araújo Souza nasceu no final do ano de 2015 e no terceiro dia de vida foi identificado com a DXB. A partir desse momento, a família começou uma campanha na internet para arrecadar fundos e custear o tratamento que consistia no uso de um leite especial livre de AACR (BCAA), que à época custava cerca de R$ 1.900,00 apenas uma lata. A família conseguiu algumas latas do leite, mas depois Miguel teve de ser transferido para o Serviço de Genética Médica do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, centro de Referência no país para o diagnóstico e tratamento de desordens metabólicas de causa genética, em busca de um melhor tratamento. Hoje, depois de mais de dois anos do início do tratamento em Porto Alegre e com quase três anos de idade, Miguel ainda prossegue no tratamento, mas já pode fazer atividades como algumas brincadeiras de criança e cantar. Além disso, Miguel já voltou para Luís Correia, sua terra natal, tendo que retornar à Porto Alegre apenas para realização de exames de rotina e acompanhamento médico.

Como foi falado anteriormente, o diagnóstico dessa doença, assim como de outros EIMs, é difícil de ser realizado no país, principalmente, devido a estrita cobertura dos testes de triagem neonatal, como o teste do Pezinho e a falta de mais centros especializados no diagnóstico e tratamento dessas enfermidades ao longo do território nacional. Esses fatores contribuem para que os EIMs sejam considerados doenças negligenciadas. Desse modo, a elaboração e a utilização de estratégias que visem enfrentar e sanar essas dificuldades, poderão auxiliar no reconhecimento da importância dessas doenças e com isso, diminuir o número de óbitos e melhorar a qualidade de vida dos pacientes acometidos.


Referências:

FEIER, F.H. et al. Successful domino liver transplantation in maple syrup urine disease using a related living donor. Braz J Med Biol Res, Ribeirão Preto, v. 47, n. 6, p. 522-526, June 2014.

G1. Mãe mobiliza internautas para tratar filho de dois meses com doença rara. Disponível em: <http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2016/02/mae-mobiliza-internautas-para-tratar-filho-de-dois-meses-com-doenca-rara.html>. Acesso em: 08 Set. 2018.

HERBER, Silvani et al. Maple syrup urine disease in Brazil: a panorama of the last two decades. J. Pediatr. (Rio J.), Porto Alegre, v. 91, n. 3, p. 292-298, June 2015.

MOTTA, V. T. Bioquímica Clínica para o laboratório: Princípios e Interpretações. 5. ed. Rio de Janeiro: Medbook, 2009.

STRASINGER, S. K. Uroanálise e Fluidos Biológicos. 3. ed. São Paulo: Editorial Premier, 2000.

Tags: Doença da Urina do Xarope de Bordo DXB Erros Inatos do Metabolismo EIMs Genética Bioquímica Desordens Metabólicas


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